Categories: Diversos

Idealizar masculinidade afeta toda a sociedade, apontam especialistas – Agência Brasil

Jeremias* é um homem negro, de meia-idade. Convencido de que buscar ajuda seria uma demonstração de fraqueza incompatível com o ideal de masculinidade que concebeu a partir do que lhe foi ensinado ao longo da vida, ele só foi bater às portas de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) do Distrito Federal quando, desempregado e vendo as dificuldades se avolumando, admitiu para si mesmo que o sofrimento psíquico que enfrentava tinha se tornado persistente e severo.

Já em tratamento, Jeremias foi entrevistado pelo psicólogo Fernando Pessoa, que fazia sua pesquisa de doutorado entre homens usuários do serviço de saúde mental de Brasília. Pessoa buscava compreender como o machismo interfere na vida dos homens e na saúde de suas respectivas famílias. Durante uma conversa com Jeremias, o psicólogo percebeu que sua suspeita tinha fundamento: para muitos homens apegados ao modelo hegemônico de masculinidade, o próprio adoecimento é vivenciado como um fracasso pessoal e um fator de enfraquecimento de suas identidades.

Notícias relacionadas:

Governo anuncia R$ 200 milhões para saúde mental em 2023 .“Vários usuários dos CAPs que entrevistei se sentiam à margem deste modelo. O Jeremias, por exemplo, disse: ‘Estou desse jeito porque não sou homem. E não sou homem porque estou deixando faltar coisas. Minha esposa falou: ‘Jeremias, não tenho mais fraldas para os meus filhos’. O que eu faço? Aqui [no CAPs], eu [Jeremias] vejo muito cara batalhador que se sente menos porque não consegue bancar a família; não consegue ser aquilo que esperavam que a gente fosse. E aí a gente começa a se perder’”, relembrou Pessoa, reproduzindo a declaração de Jeremias que registrou na sua dissertação.

O psicólogo contou o caso nesta sexta-feira (14), durante um seminário que o Ministério da Saúde realizou para promover o debate acerca dos efeitos do machismo sobre a saúde da população em geral. Voltado principalmente para gestores públicos e profissionais de saúde, o evento também abordou as formas como as políticas públicas podem promover maneiras mais saudáveis de as pessoas vivenciarem as diversas manifestações de masculinidade e feminilidade.

Atualmente trabalhando na Coordenação de Atenção à Saúde do Homem, do Ministério da Saúde, Pessoa lembrou que as pesquisas acadêmicas e a prática profissional são unânimes ao apontar os malefícios da falsa ideia de que homens devem ser viris, competitivos, provedores e aspirar a uma relativa invulnerabilidade.

“Conforme demonstram as evidências científicas, os homens que adotam os padrões tradicionais de masculinidade têm mais transtornos mentais, buscam menos os serviços de saúde, têm maiores taxas de suicídio, se envolvem mais em situações de violência – especialmente de violência autoprovocada [autoagressões, tentativas de suicídio e suicídios]. Eles também fazem mais uso prejudicial de álcool e apresentam maior resistência ao uso de preservativos. Consequentemente, apresentam maior incidência de doenças sexualmente transmissíveis. E também vão ter menor adesão a programas de imunização”, elencou o psicólogo.

A própria Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, em vigor desde 2009, corrobora a opinião de Pessoa ao estabelecer a necessidade de o Poder Público “promover a mudança de paradigmas no que concerne à percepção da população masculina em relação ao cuidado com a sua saúde e a saúde de sua família”.

Além disso, há anos a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) vêm apontando a necessidade de as sociedades discutirem a masculinidade, já que, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), “expectativas sociais em relação aos homens — de serem provedores de suas famílias; terem condutas de risco; serem sexualmente dominantes e evitarem discutir suas emoções ou procurar ajuda — estão contribuindo para maiores taxas de suicídio, homicídio, vícios e acidentes de trânsito, bem como para o surgimento de doenças crônicas não transmissíveis”.

Professora do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Thereza Couto destacou que a construção de políticas públicas deve levar em conta a possibilidade de influenciar na construção de modelos de masculinidades que tragam benefícios para a saúde e bem-estar não só dos homens, mas também de mulheres e crianças.

“Aqui [no Ministério da Saúde] é um espaço de gestão muito forte, muito precioso para isso. E já temos, no Brasil e na América Latina, uma produção de pelo menos duas décadas sobre a complexidade do debate em torno do paradoxo dos homens que não se responsabilizam por sua saúde, não procurando ajuda, e que são os que mais morrem por causas evitáveis.”

Coordenador de Atenção à Saúde do Homem, do Ministério da Saúde, Celmário Brandão garantiu que a pasta está empenhada em “problematizar a condição destes homens e das masculinidades apreendidas pela sociedade, bem como os reflexos da questão para o campo das políticas sociais”. Já a coordenadora-geral de Articulação do Cuidado Integral do ministério, a também psicóloga Grace Fátima de Souza Rosa, destacou, ao abrir o seminário, que “olharmos para as diversas expressões das masculinidades na nossa sociedade é uma forma de cuidarmos da saúde do homem e, através dele, da saúde de toda a sociedade”.

A íntegra do vídeo do seminário está disponível no canal do DataSUS no YouTube.

*Nome fictício

Share

Recent Posts

STJ – Repetitivo vai fixar início do prazo para quitação da dívida em ações de busca e apreensão

Repetitivo vai fixar início do prazo para quitação da dívida em ações de busca e…

29 minutos ago

Rádio Nacional transmite jogos do Brasileirão neste final de semana – Agência Brasil

A Rádio Nacional transmitirá dois jogos válidos pela 28ª rodada do Campeonato Brasileiro neste final de semana.…

29 minutos ago

STJ – Compete à Justiça do Trabalho a execução de crédito trabalhista com fato gerador posterior ao pedido de recuperação

Para a Segunda Seção, após o fim do período de suspensão das execuções (stay period),…

1 hora ago

Brigadista morre durante combate a incêndio em São Paulo – Agência Brasil

Foi enterrado nesta quinta-feira (26) em Itirapina (SP) o brigadista Tiago dos Santos, de 38…

11 horas ago

InfoGripe indica aumento de síndromes respiratórias por covid-19 – Agência Brasil

Em seis estados e no Distrito Federal, o cenário de aumento de casos de Síndrome Respiratória Aguda…

12 horas ago

Jovem de 16 anos morre no Líbano, dizem familiares – Agência Brasil

Os bombardeios israelenses no Líbano podem ter feito uma nova vítima brasileira. Familiares de uma…

12 horas ago